“O homem que vive a vida imperfeita ao abrir seus olhos para a perfeição sente essa vida como excesso incomportável; e ou se apavora ante ela, ou a nega, ou, ainda mais vulgarmente julga inteiramente ignorá-la: toda a perplexidade ante o nada radica num sentido germinal ou transitivo da plenitude. Entre aquelas atitudes e a de aceitar o que nos transcende como positivo objecto de conhecimento há uma diferença de grau, não uma diferença de natureza. A linguagem, a expressão do homem é constantemente equívoca e balbuciante. E importa ter penetrado para além da expressão para encontrar o próprio momento de ser, e conceber o trânsito da noite ao dia, da sombra à luz, a semente e o concreto princípio. Tarefa difícil, esta, quando cada um deles é inconsciente dele e involuntária ou voluntariamente o desfigura”.
José Marinho, Aforismos sobre o que mais importa
Apontamento Biográfico
José Carlos de Araújo Marinho nasceu na cidade do Porto no dia 1 de Fevereiro de 1904.
Licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1926, com a dissertação subordinada ao título Ensaio sobre a Obra de Teixeira de Pascoaes. Em 1930, frequenta a Escola Normal Superior de Coimbra, cujo trabalho final é denominado de Teoria e Metodologia do Português e do Francês, e é convidado por Joaquim de Carvalho para ser seu assistente. Marinho, porém, não aceita e torna-se professor de liceu. Leccionará no Porto, em Faro e em Viseu.
Colabora em revistas como a Presença, a Princípio, a Águia e a Seara Nova. Nesta última, entre 1934 e 1935, estabelecerá uma polémica com António Sérgio (1883-1969) a propósito de um comentário que o ideólogo dos Ensaios havia feito ao livro que Sant’Anna Dionísio (1902-1991) tinha publicado, na Seara Nova, com o título Antero de Quental - Algumas notas sobre o seu drama e a sua cultura.
Em 1937 é preso, durante dois meses, por motivos políticos, no Aljube, em Lisboa. Os professores e o Reitor do Liceu de Viseu haviam enviado, para o Ministério do Interior, um telegrama de repúdio contra a Lei Cabral, criada em 1935 (esta obrigava todos os funcionários públicos a declararem que não pertenciam a sociedades secretas). Contudo, embora o seu nome constasse no telegrama, José Marinho nunca assinou tal protesto. De qualquer modo, para além de ter sido preso, foi demitido da função pública e nunca mais a ela regressará. Dedicar-se-á às traduções e às explicações particulares.
Em 1941 fixa, finalmente, residência em Lisboa. Mais tarde, trabalhará no Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste Gulbenkian.
Morre no dia 5 de Agosto de 1975, em Lisboa.
Apontamento Crítico
José Marinho é um discípulo fervoroso de Leonardo Coimbra (1883-1936). Foi seu aluno na Faculdade de Letras do Porto e nunca se separou espiritual e intelectualmente do professor por toda a sua vida. De todo o modo, Marinho estrutura uma linha de pensamento muito original, destancando-se da teoria do criacionismo proposta pelo mestre Coimbra e aventurando-se num novo pensar. Assim sendo, o pensador portuense move-se, essencialmente, pela dignificação de uma “razão situada”, tão descredibilizada pelo racionalismo e pelo idealismo crítico que, à época, vigoravam em Portugal, importados sobretudo de França e de Inglaterra. Sem descurar o aspecto universal da filosofia, José Marinho acredita que o sujeito (homem situado) é influenciado pela língua em que pensa e escreve, pela tradição onde está enraizado, pelo ambiente sócio-cultural ao qual está integrado. Neste sentido, debate-se, então, pela elevação da cultura portuguesa, pela originalidade do pensar português, pela filosofia nacional. Na sua perspectiva, não faz sentido apelar-se para uma Razão Pura - escrava das estruturas formais e dos modelos que encarceram para sempre o homem a uma lógica perfeita que tudo unifica e explica -, mas antes para uma Razão Sublimada que, ao negar o formalismo e a metodologia, aponta para o mito, para os arquétipos, para os símbolos, para a poesia, nos quais, ao fim e ao cabo, radica o ser do homem.
Para além de ter escrito muito e de amadurecer constantemente aquilo que ia reflectindo, muitas vezes durante anos, a obra emblemática de José Marinho vem a público, porém, apenas em 1961: Teoria do Ser e da Verdade. Dizemos emblemática essencialmente por duas razões: em primeiro lugar porque é um ensaio de cifra enigmática, de leitura difícil para o leitor desprevenido; e em segundo porque nele condensa grande parte das suas propostas filosóficas. Nesta obra, Marinho discute, então, expressões como “insubstancial substante”, “visão unívoca” e “o ver sem distância”. Tal obra alude simbolicamente a uma viagem, a uma longa e insituada viagem, que, no fundo, visa perscrutar a senda do Ser. Obra fundamentalmente de natureza ontológica, Teoria do Ser e da Verdade pretende escapar dos formalismos cognitivos e conceptuais que todo o saber e toda a epistemologia tradicionalmente engendram e propor um apelo para a visão intuitiva – visão unívoca. Esta, no fundo, afastada que está de todas as cisões que, no homem, posteriormente se impõem, poderá conceder-lhe a verdade do Ser, sem reflexões e meditações, sem o auxílio de formas ou categorias exteriores. Ou seja, nessa visão, quando o ser é consigo mesmo (“completa comunhão”), saberá toda a verdade. Contudo, o ser que é consigo mesmo não pode saber-se, precisa ser para si para poder saber-se. Nesse instante, ocorre a cisão e o homem lançará mãos de um processo gnosiológico, absolutamente exterior, para alcançar a verdade. Algo que a visão unívoca, curiosamente, já lhe tinha proporcionado.
Bibliografia Indicativa
O pensamento filosófico de Leonardo Coimbra (1945)
Teoria do ser e da verdade (1961)
Elementos para uma antropologia situada (1966)
Filosofia, ensino ou iniciação? (1972)
Verdade, condição e destino no pensamento português contemporâneo (1976)
Estudos sobre o pensamento português contemporâneo (1981)
Aforismos sobre o que mais importa (1994)
Significado e valor da metafísica (1996)
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